quarta-feira, 14 de maio de 2014

A ditadura em versos cantados

Na manhã do dia 1º de abril, o golpe militar, se instala o governo militar no Brasil. O que tinha tudo pra ser mentira era, de fato, a mais dura verdade: uma ditadura que se arrastou por 21 anos, reprimindo a liberdade e os direitos civis da população brasileira. Durante o regime militar, vários setores da sociedade, em especial a juventude estudantil, organizaram-se e lutaram contra a ditadura. Eram eles militantes, músicos, atores, etc. Na realidade, essa efervescência social já vinha desde a crise econômica nos governos de Jânio Quadros e João Goulart deixada por Juscelino Kubitschek e o desenvolvimentismo. O golpe dizia, muito contraditoriamente, restabelecer a ordem e, como anunciava o jornal O Globo na manhã do dia primeiro, defender a democracia.
 Em termos de censura pouco se muda no começo do regime. Porém, no governo de Costa e Silva, a repressão de intensifica com o surgimento do AI-5: " Era o golpe dentro do golpe, um golpe de misericórdia na caricatura de democracia" (Gabeira, 1984, p.119). Ainda que de maneira árdua, a música foi um veículo que resistiu a forte censura e teve importante papel ao tornar a critica à ditadura algo popular, declamar versos que virariam hinos da luta contra a repressão. De modo direto ou subliminar, a música mostrava a realidade à quem a ouvia. 
Os dois principais nomes nesse sentido foram Francisco Buarque de Holanda, o Chico Buarque, e Geraldo Vandré. Porém, inúmeros outros cantores engajavam em seus versos críticas à ditadura. Existiam duas linhagens de crítica: a crítica direta, em linguagem clara e popular, representada por Geraldo Vandré ("o poeta popular"), e a crítica sutil, cheia de recursos de linguagem como metáforas, representada por Chico Buarque ("o artesão da linguagem"). Por seu tom mais direto, Geraldo se tornou muito mais popular e logo foi preso e torturado, sendo achado jogado na rua e sem memória tempos depois. Chico inicialmente foi duramente criticado pelas suas letras que seriam "alienadoras" e por ser de classe média alta. Esse fato fez com que, mais tarde, adotasse um estilo mais direto, como nas músicas Apesar de Você e Acorda Amor. sobre isso, ele escreve: “O artista popular revolucionário poderia ser o indivíduo que mora na Zona Sul, trabalha e ganha dinheiro, tem mãe, mas vê que a favela é logo ali e que na porta de seu edifício dorme um mendigo adulto. Sente-se, então, compelido a renegar sua existência de ‘burguês de doirada tez’ para juntar-se ao povo. Sua opção é moral. Sua ação política é uma questão de honra e de doutrina” (holanda, 1981, p. 25). 
O fato é que foram muitas os músicos que lutaram contra a ditadura. Uma luta ideológica. Com o governo Médici a repressão atinge seu auge, e o teatro praticamente se extingue, reproduzindo apenas peças antigas. A música, por sua vez, continua, realizando, como dizia Chico, " ginásticas incríveis" para desviar da censura.
Com toda essa produção artística, é possível contar a história da ditadura. As músicas revelam detalhes da vida e da repressão violenta do período. Seguem alguns exemplos de músicas e breves comentários sobre seus contextos, para que entendamos a força ideológica que elas carregavam.

A Banda 

Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor...
Essa música trata da desilusão do povo oprimido com a ditadura, sendo um recorte da vida urbana na época. A "gente sofrida", o "velho fraco", a "moça feia". Chico faz uma sobreposição entre esperança e desesperança. Isso evidencia a própria desilusão quanto ao regime ditatorial, que "defenderia a democracia" e ao "milagre brasileiro". Aquele fundo de esperança se desmanchou rapidamente com a violenta repressão e com a crise do petróleo, e é isso que a última estrofe nos mostra. A Banda se refere portanto, à toda propaganda nacionalista que o regime militar trouxe, às falsas promessas, etc.
Sabiá 
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De um palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor Talvez possa espantar
As noites que eu não queira
E anunciar o dia
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
E é pra ficar
Sei que o amor existe
Não sou mais triste
E a nova vida já vai chegar
E a solidão vai se acabar
E a solidão vai se acabar
A música aborda um saudosismo dos exilados políticos durante a ditadura, mas com um tom crítico, já que existia um saudosismo mas uma consciência de que era de algo que aqui não mais existia, e que, com esperança, voltaria: no contexto, a liberdade e os direitos civis. Isso fica evidente nos versos: "Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Vou deitar à sombra / De um palmeira / Que já não há / Colher a flor / Que já não dá / E algum amor Talvez possa espantar / As noites que eu não queira / E anunciar o dia"

Disparada 

Prepare o seu coração
Pras coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
A morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar
Eu vivo pra consertar
Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu
Boiadeiro muito tempo
Laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos
Que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei
Então não pude seguir
Valente em lugar tenente
E dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar
Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei
Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei
A música aborda uma comparação entre a exploração das massas pelo governo vigente e a exploração da boiada pelo boiadeiro. Critica, assim, o governo militar e a alienação do povo. geraldo Vandré ainda parafraseia João Goulart no verso "eu venho la do sertão", frase dita por Jango, que é nascido no interior do Rio Grande do Sul. 
Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores 
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Essa é a mais evidente e direta crítica à ditadura em termos de música. Ela traduz bem o estilo de Geraldo Vandré, mais popular e com linguagem mais clara, o que resultou em sua prisão e tortura. A começar pelo título, que basicamente fala que nada adianta falar das flores àqueles que atacam com armas. O resto da letra faz críticas a diversos aspectos da ditadura, como jovens militares que sequer entendiam o significado do que faziam, além de convocar de forma explícita pessoas de diversos setores da sociedade a se juntarem e combaterem, assim, a ditadura. Trata-se de uma visão um pouco mais romântica da luta e é considerada um dos hinos dessa luta. Seu sucesso se da justamente pela linguagem clara e as rimas fáceis, que são decoradas pelas pessoas rapidamente.
Acorda amor
Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão
Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão
Se eu demorar uns meses
Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer
Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
Com pouca popularidade e muito criticado por sua linguagem mais complexa, que não atingia de fato as massas, Chico decide adotar um estilo que se assemelha mais com o de Vandré: mais direto e cotidiano. E inaugura tal estilo com essa música. Ela conta a história de um homem que pela manhã tem sua casa invadida por militares e é levado. Ela mostra de forma clara a incerteza de quando as pessoas podiam ser surpreendidas por militares em suas casas, pra onde eles a levariam e por quanto tempo. Na primeira estrofe, Chico utiliza de rimas com terminações "ura" para que fique subentendido que quem invadia a casa era a ditadura, sem precisar falar essa palavra. O compositor mostra suas habilidades em lidar com as palavras de modo a driblar a censura. Tanto é que, incrivelmente, essa música passou pela censura despercebida. Ele ironiza a situação ao escrever "chame o ladrão" e, ao cantar, gagueja ao cantar essa parte. Desse modo ele tenta transmitir a confusão do homem que, no reflexo, ia falar "chame a polícia", mas se da conta que a polícia é militar e é ela que o prende provavelmente por ser contra a ditadura. Portanto, sem ter quem chamar, o homem chama o ladrão. A terceira estrofe também aborda de forma clara a falta de explicações e a questão das pessoas desaparecidas, cujas famílias ainda hoje não sabem sequer onde estão as ossadas. 
Apesar de você

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Ainda seguindo uma linhagem mais direta e clara, Chico Buarque escreve o que viria a ser um dos hinos da luta contra a ditadura. A música fala de maneira muito clara da ditadura, com fortes críticas, denúncias e ameaças ao regime. Chico tentou driblar a censura alegando que a letra tratava de uma mulher autoritária. Não deu certo, a música, em um primeiro momento, foi censurada no governo de Médici, em 1970, quando foi composta. Só veio a ser liberada oito anos depois, no final do governo Geisel. Fica muito clara a ameaça de Chico e a convocação da população em expressões como "a enorme euforia", "o galo insistir em cantar", "água nova brotando", "vou cobrar com juros", "esse grito contido", "você vai pagar e é dobrado", "o jardim florescer", "o dia raiar", "a manhã renascer", "o céu clarear", etc. Essa foi a única canção que Chico admite ter sido composta para criticar a ditadura. Ele a compõe ao voltar da Itália, onde estava em exílio, e perceber que o Brasil pouco mudara. Depois dessa música o nome do cantor fica marcado na censura e a atenção sobre ele é redobrada, o que o obriga a utilizar pseudônimos como Julinho da Adelaide e Leonel Paiva para publicar suas músicas, como Acorda Amor.
Meu caro amigo
Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando que também sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita careta pra engolir a transação
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus
A música, composta por Chico Buarque e Francis Hime, é uma carta-cassete a um amigo pessoal desses compositores que fora exilado em Lisboa, Augusto Boal. Chico atendeu ao pedido do amigo e relatou, em seus versos, a situação dura que o Brasil ainda estava, alertando-o para que não voltasse ainda. Ele escreve sobre a situação econômica muito ruim, sobre a dificuldade de se viver em meio a ditadura, etc, alegando que a situação estava "preta". No final ele se despede e mandando um beijo para a família de Augusto, o que caracteriza uma carta-cassete.
Samba de Orly
Vai, meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão de correr assim
Desse frio, mas beija
O meu Rio de Janeiro
Antes que um aventureiro
Lance mão
Pede perdão
Pela duração dessa temporada
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada
Diz que vou levando
Vê como é que anda
Aquela vida à toa
E se puder me manda
Uma notícia boa
Pede perdão
Pela omissão um tanto forçada
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada
Diz que vou levando
Vê como é que anda
Aquela vida à toa
Se puder me manda
Uma notícia boa
Em 1968, ano do AI-5, Toquinho foi para a Itália para se apresentar com Chico, que havia se autoexilado lá. Depois de 40 dias, quando Toquinho estava voltando pro Brasil, Chico escreve essa letra. A música aborda a ditadura principalmente em "pede perdão pela duração dessa temporada", onde Chico critica o tempo que a ditadura já durava, que apesar de não ser muito em comparação com toda a sua duração, era muito em comparação com o tempo que esperava-se que ela duraria, e em "pede perdão pela omissão um tanto forçada", verso que critica o cale-se e que foi censurado, sendo substituído pela repetição do "pede perdão pela duração dessa temporada".
Opinião
Podem me prender
Podem me bater
Podem, até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Daqui do morro
Eu não saio, não
Se não tem água
Eu furo um poço
Se não tem carne
Eu compro um osso
E ponho na sopa
E deixa andar
Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor
Estou pertinho do céu
A música foi escrita por Zé Keti e, inicialmente, nada tinha a ver com o regime militar. Composta e 1964 para a peça teatral homônima, ela era uma crítica ao governo estadual do Rio de Janeiro, que desejava retirar as favela do morro. Porém, a música fez sucesso na voz da cantora Nara Leão, o que acabou fazendo com que ela transcendesse o problema local e se tornasse, na linguagem popular, uma crítica à ditadura. Quatro anos depois, foi censurada.
Cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Essa música é uma das mais críticas e também mais complexas em termos de linguagem e recursos metafóricos de Chico Buarque. Primeiramente, o título cálice faz um jogo de homofonia com cale-se. Assim, o efeito para quem ouve é de "cale-se, pai", referindo-se a época da censura e repressão mais violenta, o governo Médici. Outro método usado por Chico e outros compositores da época era encher a letra de impropérios. Esses impropérios eram todos censurados e só sobrava uma nova letra, que fazia sentido sem os impropérios e acabava passando despercebida. Esse método foi utilizado nessa música. Por exemplo, podemos notar, na terceira estrofe, uma sequência de rimas com terminação em "uta" (labuta, escuta, bruta) que é quebrada por "filho da outra". Nesse trecho provavelmente essa técnica havia sido utilizada. Além disso, em toda a letra é possível notar a questão do silencio e da censura, como nos versos "Mesmo calada a boca, resta o peito", "Silêncio na cidade não se escuta", "Como é difícil acordar calado", "Esse silêncio todo me atordoa" e "Essa palavra presa na garganta". A crítica também está presente em "Tanta mentira, tanta força bruta", que se refere à violência do regime, em "Ver emergir o monstro da lagoa", que trata de uma possível revolta do povo, e em "Quero cheirar fumaça de óleo diesel", onde ele ironiza um dos métodos de tortura do regime militar. A letra inteira é carregada de simbologias e significados. Na noite que ia ser apresentada pela primeira vez, por Chico e Gil, quando eles começaram a cantar, desligaram-se os microfones. A música foi censurada e só foi liberada 5 anos depois. Chico já não mais estava trabalhando com tema de ditadura mas fez questão de gravá-la.
Vai passar
Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)
Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar
A música foi escrita já no final do período militar, em 1984, e se refere ao longo período, declamando seu fim. A segunda estrofe inteira se refere à ditadura, "passagem desbotada na memória das nossas novas gerações", citando-a como "Página infeliz da nossa história" e comentando as "Tenebrosas transações" que ocorreram no período que acarretaram uma inflação desenfreada, proporcionando a década perdida da economia. O autor, em seu samba mais popular, fala da evolução da liberdade e do clarear do dia, se referindo, finalmente, à queda da ditadura.
É possível concluir que, com algumas músicas entre as várias compostas, é possível contar e recontar essa parte da nossa história que é tão obscura. O legado musical do período ditatorial representa, portanto, um verdadeiro antídoto à amnesia dos brasileiros.
Bibliografia
literatortura.com
chiconaditadura.blogspot.com.br
Chico Buarque - Wagner Homem
analisedeletras.com.br





1 comentários:

Ale Lopes disse...

Adorei essa postagem!!! Ótimas interpretações!!!

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